Existe amor à primeira vista? Bem, esta costumava ser uma pergunta recorrente quando o assunto era paixão, e creio que ainda seja. Afinal, os mitos e as lendas persistem. Cupido, o deus do amor, remonta à Grécia Antiga. Asseguram-nos os gregos dos velhos tempos que Cupido era uma linda criança alada e armada de arco e flechas, que voava pelo mundo e feria, por acaso, os mortais. Estes, uma vez atingidos por uma das flechas desse deus criança caiam apaixonados, doentes de amor.
Da criatividade dos gregos ninguém duvida. Tampouco sua proverbial sabedoria é questionável e, no caso, chama a atenção o fato de o deus do amor ter sido caracterizado como uma criança alada e armada, portanto, potencialmente capaz de realizar grandes estragos, partindo-se da premissa de que infância e irresponsabilidade andam juntas. Cair apaixonado, doente de amor, portanto, já era um estado diagnosticado pelos velhos gregos que, inclusive, explicavam esse insólito acontecimento como efeito do veneno das flechas do pequeno deus e suas costumeiras travessuras.
Assim, apaixonar-se perdidamente não é privilégio dos tempos presentes, mas uma persistência que mereceu, dos antigos gregos, elevação ao caráter lendário. Um belo status, convenhamos. Mas e você? Já se apaixonou à primeira vista? Eu, com certeza, não. Imunidade total às flechadas do pequeno deus brincalhão. Todavia, sei de um caso que, seguramente, só posso atribuir às peraltices de Cupido, porque outra explicação, com certeza, não encontro. Um caso tão peculiar, que penso que merece ser contado. E, para bem contá-lo, desde já, peço vênia à minha prolixidade de estilo, algo que julgo essencial quando tudo, na narrativa, depende de certos detalhes.
Pois bem. O ano era 1969. César, que mais tarde ficou conhecido como um libertino de primeira ordem, era ainda um jovem de pouco mais de 20 anos que, apesar de gaúcho nascido na capital, era frequentador assíduo da casa da avó materna situada no interior do estado.
A vida nas pequenas cidades do Rio Grande do Sul era, à época, muito bem regrada e previsível. Cidade pequena e tradicional: a praça, a Prefeitura, a Câmara Municipal e a Igreja, no caso, a Romana. No desenho urbano, as casas das principais famílias situavam-se na área central. Depois vinham os bairros habitados por quem até tinha dinheiro, e que, apenas por conta disso, desfrutava de algum prestígio, mesma área na qual se distribuíam os templos das demais confissões religiosas. Por fim, a periferia, que era eminentemente rural, ocupada por pequenos produtores. Discretamente situada a alguma distância de tudo isso, emergia o casarão que marcava a chamada zona do meretrício. No caso, uma casa “clássica”, dominada por uma velha cortesã que jamais dispensava a luz vermelha do lado de fora nem a compostura do lado de dentro, porque proibia certos comportamentos que somente nos quartos eram admitidos. Estava assim, portanto, garantida a respeitabilidade de todos os cidadãos de bem e de suas muito respeitáveis famílias, dentre as quais, aquela à qual o jovem César pertencia.
Dessa antiga e tradicional família, um dos mais destacados membros chamava-se Adão, ou melhor, tio Adão, como César o tratava desde criança. Não obstante a relação entre tio e sobrinho possa fazer presumir certa hierarquia, entre César e seu tio Adão a diferença era de pouco mais de 10 anos. Sendo o tio não muito mais velho que o sobrinho, é natural que os laços entre eles se estreitassem com o convívio, resultando daí não apenas uma grande amizade, mas também companheirismo e cumplicidade.
César cresceu sob a proteção do tio Adão. Com ele aprendeu a dirigir, a jogar bola, a brigar na rua, a dar as primeiras tragadas em um cigarro, a tomar o primeiro porre. Aprendeu também a cantar, dançar e frequentar assiduamente o prostíbulo da cidade desde a tenra idade de 12 anos, tudo graças à fama e ao renome do tio Adão, famoso por suas lendárias façanhas não só na zona da cidade como também nos demais puteiros dos arredores. Poupemo-nos de formular juízos de valor acerca de práticas que, afinal, já foram tradicionais no interior deste estado. Assim criavam-se os meninos naquele tempo. Devo acrescentar, todavia, que havia os bons exemplos. Com o tio, César também aprendeu a importância de se expressar corretamente, a de dominar a linguagem e, sobretudo, a de comportar-se com elegância em qualquer ambiente.
Com muitos predicados, tio Adão ― jovem ainda, mas já estável profissionalmente ― não demorou a se casar com uma moça de boa família que logo lhe deu filhos, enchendo a casa de belas crianças, para seguir à risca os protocolos da tradição.
Ora, descrito o cenário e os personagens, estando o leitor já devidamente aclimatado, vamos aos fatos, porque, afinal, esta história pretende, na verdade, é falar do tal amor à primeira vista.
Pois bem.
Certa feita, cumprindo a rotina dos almoços domingueiros com a família, aconteceu, enfim, algo bastante insólito. Estavam Tio Adão, sua excelentíssima esposa e todos os filhos do casal reunidos à mesa de uma tradicional churrascaria da cidade. Instalados nos devidos lugares, pouco antes da escolha das bebidas, tio Adão lançou um longo olhar à sua volta para cumprimentar amigos e conhecidos que, no caso dele, eram muitos. Nesse momento, notou que no local uma das mesas estava ocupada por um casal que ele nunca vira antes. A mesa ficava perto o bastante para ele reparar que se tratava de um casal bem arrumado. A mulher era muito elegante. Tio Adão demorou nela o olhar, reparando nos gestos, no cabelo, no porte, na serenidade da expressão de um rosto maduro, porém, de discreta e clássica beleza. Ela parecia atenta à taça de vinho tinto, enquanto tio Adão se sentia já como que hipnotizado, desejando ardentemente que ela olhasse para ele, o que não demorou muito.
Pois bem, quando os olhos de ambos se encontraram, imediatamente, alguma coisa aconteceu entre eles. Não foram necessários mais do que alguns segundos para que o veneno da flechada certeira de Cupido fizesse efeito. Apaixonaram-se. Não, leitor, eu não estou exagerando. Mantenho-me, nesta escrita, inteiramente fiel às palavras que o próprio tio Adão confidenciou a César que, por sua vez, muitos anos depois, me contou.
Mas, voltando aos fatos, como eu disse, era um almoço de domingo, e os protocolos deveriam suceder-se do modo usual. Bebidas nos copos, tão logo servida a entrada, tio Adão pediu licença para lavar as mãos. Pouco antes de erguer-se, apenas com o olhar, fez com que seu mais novo amor de algum modo compreendesse que ele faria uma discreta aproximação e que ela deveria ficar atenta. E fez isso, aliás, com maestria, ao passar bem perto da mesa do casal, deixando cair seu cartão de visita ao passar, devagar, ao lado da mulher sem que o marido ― ocupadíssimo em trinchar e saborear uma bela e generosa lasca de picanha ― pudesse sequer desconfiar.
Prevenida pelo diálogo mudo que mantiveram, ela não foi menos discreta do que ele. Soube-se depois que, simulando um descuido, ela deixou cair o guardanapo e, ao erguê-lo do chão, rapidamente leu o nome e a profissão de advogado impressos no cartão.
Na volta do toalete, bastou que tio Adão parasse em frente ao casal afetando lembrar-se deles com certeza, mas sem conseguir atinar de onde. Foi quando ela, em brilhante improviso ― sinceramente, nós mulheres, somos imbatíveis nisso ― criou uma história na qual pôde identificá-lo pelo nome e pela profissão de advogado, que, aliás, teria atuado brilhantemente na defesa de conhecidos. Foi citando pessoas da cidade na qual o casal residia e, efetivamente, não foi difícil ligar o Doutor Adão a famílias conhecidas. A conversa ganhou a simpatia do marido ― um homem muito educado e tranquilo ― e foi fácil, a partir daí, que concordasse em sentar-se à mesa do tio Adão.
Como o restaurante era um lugar conhecido e acolhedor, não houve nenhuma dificuldade para que os garçons, de maneira muito competente, procedessem à reunião das mesas. E foi assim que, na troca de lugares, a cadeira do tio ficou de frente à cadeira de sua já muito amada amante. Conta ele que a troca de carícias e o trançar de pernas e pés por baixo daquela insuspeita mesa foi algo deveras alucinante. O almoço prolongou-se com sobremesas, café e cigarros. (Naquele tempo, os chatos não tinham voz nem vez, e todo mundo fumava muito à vontade, ora!) No momento das despedidas, as famílias já eram velhas amigas.
Naquele mesmo domingo, à noite, tio Adão convocou o sobrinho Cesar para uma missão. Viajar muitos quilômetros ao volante do luxuoso Galaxie 500 do tio, o único na região, ganho a título de honorários advocatícios pela absolvição de um réu em júri popular. Assim começou esse caso de amor à primeira vista que se prolongou ― acreditem ― por mais de vinte anos. O mais impressionante é que os casais originais nunca se separaram e ninguém jamais desconfiou de nada. As famílias tornaram-se amigas. Apesar de morarem em cidades diferentes, passaram a reunir-se nos períodos de férias escolares, dividindo casas na serra e na praia. Adão e Adélia ― este era o nome dela ― mantiveram-se serenamente apaixonados e irresistivelmente atraídos um pelo outro durante todo esse tempo. Encontravam-se sempre que podiam, com ajuda de César, que articulava as desculpas e arrumava justificativas adequadas e insuspeitas das quais ninguém jamais desconfiou.
Os encontros só terminaram quando o tio Adão adoeceu gravemente e sofreu tristes consequências de uma diabetes descontrolada. Muito deprimido desde então, lamentava-se com o sobrinho ― único que conhecia o grande segredo de seu coração ― que ele não se sentia mais como homem, porque incapaz de dar para Adélia o que entendia ser o melhor dele.
― Pois então, César, eu mal posso comigo agora. Estou fraco, doente e acabado como homem. Não vou exigir de Adélia que me ature desse jeito.
Por mais que César tentasse consolar o tio, argumentando com ele que Adélia continuava a querê-lo bem, nenhum argumento foi suficiente. Daí em diante, a amizade entre as famílias permaneceu, mas os encontros secretos de Adão e Adélia cessaram. Ainda assim, César assegurou-me de que era bonito perceber, por vezes, a cumplicidade que se escondia por trás de certos gestos, olhares e palavras que eventualmente, os amantes trocavam entre si, enquanto desempenhavam cada um o seu papel de marido e de esposa junto aos seus respectivos companheiros.
Devo acrescentar que conheci pessoalmente o tio Adão por volta de1990, pouco antes de ele adoecer gravemente. Causou-me ótima impressão. Era um homem muito elegante e distinto, sobretudo pela maneira segura como se expressava. Alto, moreno e forte sem ser gordo, ele sorria pouco e olhava para todos nos olhos, sempre com altivez. Dono de uma voz magnífica, que uma oratória notável só fazia por refinar, é fácil descobrir por que tio Adão adquiriu grande renome por conta dos muitos júris populares que realizou como advogado criminalista. Fora isso, falava ao vivo na rádio local sempre como convidado assíduo. Dava gosto ouvi-lo, aliás. Sabia como conferir ao sotaque gaúcho ― que muitos por aqui fazem soar de maneira exageradamente cantada ― uma assertividade que soava sempre persuasiva e poética.
Esta história é real e, para mim, comovente. A partir dela penso que a vida, muitas vezes, corre como um rio a céu aberto, sempre rumo ao mar; outras vezes, porém, essas mesmas águas, tornadas mais densas, percorrem subterrâneos caminhos, secretas passagens, nas quais, muitas vezes, a verdade, por conveniência, é obrigada a se esconder.
Por Maristela Bleggi Tomasini
Como sempre, ilustrações impecáveis que dão vida às palavras. É muito bom participar da Revista Vida Brasil há tanto tempo. Muito obrigada, Celso!
Linda história.
Comovente.
As peripécias desse menino cupido costumam iluminar a vida, embora, as vezes, traga junto sofrimento e dor.
O Tio Adão foi um felizardo.
Viva o amor.
Parabéns pelo belo texto, Maristela.
Um ótimo texto!
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