A noite em que Waldick Soriano redesenhou o society carioca

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Encontrei esse delicioso texto de Renzo Mora, que me fez viajar ao início dos anos 60 e recordar o meu primeiro “copo” de vinho, o abominável – não naquela época –  Liebfraumilch, aquele da garrafa azul, importado diretamente da Alemanha. Waldick Soriano, então casado com uma tucanense que seria parente do meu pai, viera a Euclides da Cunha, para se apresentar no Cine Maria da Graça. Fui recepciona-lo no Hotel do Guinho, que ficava na Rua da Bomba, onde hoje está instalada a loja Canário Materiais de Construção. Calça de veludo cotelê marrom, camisa xadrez, sapato mocassim, chapelão de cowboy e o indefectível óculos escuros, subimos a pé para a Praça Duque de Caxias e fomos ao Café Society, o bar de Zezito, pai do popular Nei Campos, localizado onde hoje funciona o Bar Princesinha. Ali, retirou da sacola, aquela linda garrafa e me ofereceu um copo com o “leite da mulher amada”. Foi o primeiro de milhares de outros copos de vinho que até hoje venho degustando e aprendendo. Obrigado WaldicK!

                                                                                                                                            Celso Mathias

Há dois Rios – O de antes e o de depois da passagem de Waldick Soriano pela boate Flag

Janis Joplin foi barrada na porta da Flag, um dos templos da boêmia e da boa música do Rio de Janeiro nos anos 1960. Em compensação, Elis, Chico Buarque, Tom Jobim, Vinícius de Moraes e Sarah Vaughan não apenas passaram pelo porteiro do festejado club do Chef José Hugo Celidônio em Copacabana como deram canjas memoráveis, acompanhadas ao piano pelo mestre Luís Carlos Vinhas.

Com esse finíssimo pedigree, deve ter provocado alguma espécie o show agendado para aquele dezembro de 1971: O rei da cafonice, Waldick Soriano. Nos dias de hoje, quando milionários com déficit proteico na infância (fator identificado como inibidor de QI) ouvem abominações neo-sertanejas à guisa de música, talvez a mistura não provocasse tanta estranheza. Mas, naqueles tempos, o dinheiro não se limitava a exibir grifes: tinha que mostrar refinamento – ou pelo menos alguma imitação relativamente passável. O show de Waldick no Flag tinha sido um arranjo de Beki Klabin, a extravagante milionária turca que animava as noites cariocas. A ex do cirurgião plástico Hosmany Ramos (mais tarde preso por tráfico internacional de drogas), conhecida pela ausência de atrativos não monetizáveis, estava nos bastidores do programa do Chacrinha (onde era – vá lá – “jurada”) quando encontrou o intérprete baiano e rendeu-se ao seu charme rústico, iniciando um comentado romance.

Waldick foi agendado como um freak show, uma piada para milionários entediados, uma espécie de atração de safári fotográfico pelo subúrbio. Mas eles, obviamente, não sabiam com quem estavam lidando e cometeram o erro de menosprezar nosso Johnny Cash. Vamos começar, bem, pelo começo: Waldick teve uma origem tão pobre quanto Cartola, por exemplo. Angenor de Oliveira foi, como ele, servente de pedreiro (usava um chapéu-coco para se proteger do cimento que caía de cima, o que lhe valeu o apelido).

Eurípedes Waldick Soriano iniciou sua vida profissional no mundo não exatamente cordial do garimpo, onde qualquer mínima desavença pode terminar em assassinato. Ele próprio por pouco não matou o novato desavisado que deu um tiro em seu bicho de estimação – uma jiboia de nome Índia (a tristeza com a morte da cobra teria sido a razão dele ter abandonado as pedras preciosas da baiana Serra da Coruja). De lá, juntou seus trocados e partiu para as ruas de São Paulo, determinado a virar cantor. Antes disso, foi engraxate – e não seria impossível que pouco tempo antes ele tivesse lustrado o sapato de alguns de seus espectadores daquela noite na Flag. Cartola escreveu sambas memoráveis, como “As Rosas Não Falam” e “O Mundo é Um Moinho”. Mas Waldick compôs – entre outras pérolas – “Tortura de Amor”,    genial bolero eternamente ignorado pelos estudiosos de música, o que deixa claro: o andar de baixo pode fazer música, desde que circunscrita a um gênero devidamente chancelado pela intelligentsia. O resto é brega e não falamos mais nisso.

Para aprisioná-lo ainda mais no último círculo do folclore nativo, o visual de Waldick era produto de sua tentativa duvidosa de emular o estilo de seu ídolo das telas, Durango Kid – terno preto, chapéu e óculos escuros. A primeira aparição de nosso man in black devidamente paramentado provocou o que ele chamou de “mangação” por parte da cafajestada de um bar em sua Caetité natal. Ele colocou seu cavalo para cima dos “mangadores”, espancou os desajuizados que não fugiram e impôs seu look definitivamente. E foi de cowboy de matinê que ele venceu as portas da Flag. O início foi frio. Waldick não conhecia o público – e este ignorava qualquer canção de seu repertório que não fosse a icônica “Eu Não Sou Cachorro Não”. Mas sua química começou a funcionar. As mulheres começaram a beber. E, bebendo, começaram a sentir a combinação mortal de Scotch 12 com os feromônios fermentados com cal no pátio de uma construção. Ao final, como ele próprio contou em suas memórias “…a festa chegou ao máximo. Tirei o paletó, abri a camisa e subi no piano. As granfinas vinham me cumprimentar, abraçando-me, beijando-me… uma delas, quando me beijava boca-com-boca, língua-com-língua, deu-me uma sensação de loucura tão grande que caímos ali no meio do salão e fomos apartados, porque senão a briga era feia, naquela hora o troço seria imprevisível”. Sergio Bitencourt registrou em sua coluna no jornal O Globo de 22/12/1971: “Foi uma loucura. Não dava nem para periquito voar. De repente virou histeria. Gente que, sinceramente, eu nunca pensei, entregou-se”. Aquela noite no Flag deve ter deixado marcas indeléveis na sociedade carioca. Madames no Country Club passaram a ser julgadas com base em sua falta de resistência ao cantor. Reputações quatrocentonas devem ter desmoronado. Senhoras até então respeitáveis guardaram seus maiôs e desapareceram da piscina do Copacabana Palace. Casamentos estremeceram. Namoros viraram pó. Beki Klabin passou a ser – pela primeira vez – alvo da inveja de seus pares. Sócios de longa data podem ter rompido aos tapas depois de ouvir uma das partes comentar inocentemente “sua mulher, hein, como gosta do Waldick…” A piada da noite era Waldick. Mas ele riu por último.

 

 

 

Por Renzo Mora – escritor e roteirista. Publicou os livros “Cinema Falado”; “Sinatra – O Homem e a Música”; “Fica Frio – Uma Breve História do Cool” e “Frank, Dean & Sammy: 3 Homens e Nenhum Segredo”.

 

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